Por: Rafaela Lotici Gonçalves da Silva
Considerando
que a cultura africana ainda é estigmatizada, possui um estereótipo de
apagamento de registros histórico-culturais, o livro vem em a contribuir para a
desmistificação desse preconceito além de causar a sensação de deleite ao
leitor que ao se deparar com toda a uma carga cultural, consegue visualizar a
tamanha riqueza que o continente africano possui.
A
conectividade com a Mãe África, a terra, a natureza, os deuses, está presente
nas sessenta e seis belas histórias das crenças da cultura africana. Em seguida
uma das histórias na íntegra para aguçar o paladar literário.
“Iemanjá dá a luz”
Iemanjá, vivia sozinha no céu, sob as vistas de Olorum, o
deus supremo africano. Este, ao ver um dia o quanto a deusa estava isolada,
resolveu que era hora de ela povoar a sua solidão.
- Iemanjá deve
ter alguém que lhe faça companhia - disse o deus a si mesmo.
A lenda não diz exatamente o que Olorum fez, mas o fato é
que depois de algum tempo a barriga de Iemanjá começou a crescer
extraordinariamente.
- O que será
isto? - dizia ela, a observar o ventre cada vez mais disforme.
Iemanjá passou em revista toda a sua alimentação, mas
nada encontrou de anormal.
-
Não entendo! Não comi um grão a mais! - disse ela, convicta da inocência como
uma obesa reincidente diante do ponteiro acusador da balança.
Em vão. Quanto mais a deusa se espantava, mais o ventre
crescia.
Então, no dia em que, diante do espelho, não pôde mais
ver seu próprio rosto, correu apavorada até Olorum.
- Até quando
isto irá? - disse ela, abraçando o ventre como quem abraça o globo terrestre.
- Calma,
menina, falta pouco - disse o deus, muito calmo.
- Pouco? Quanto
pouco? - disse ela, muito nervosa.
- Bem pouquinho
- disse ele, extraordinariamente sereno.
Iemanjá voltou para casa sem ter conseguido se acalmar.
- O que haverá
aqui dentro? - disse ela, encostando o ouvido no próprio ventre.
Um ruído de búzios soltos a se chocarem entrou-lhe pelo
ouvido.
- Quantas
coisas a agitarem-se dentro de mim! - disse ela, apavorada.
Os dias passaram e seu ventre expandiu-se tanto que ela
passou a ser só um ventre com pernas e braços.
- Socorro! -
disse ela, mirando não o deus, mas a gigantesca esfera do seu ventre.
- Calma, chegou
a hora - disse Olorum, não muito serenamente, já que afastou-se um pouco e
discretamente para o lado.
Neste instante Iemanjá deu um grito - um grito que não
sabemos dizer se foi de dor ou de alegria - e caiu deitada de costas. Logo em
seguida suas pernas se abriram e de dentro dela escapou-se uma torrente
fantástica de pequenas luzes faiscantes.
- Chame-as de
"estrelas", minha querida! - disse Olorum, radiante. - A partir de
hoje, suas noites deixarão de ser escuras e solitárias!
A torrente de estrelas continuou a espalhar-se por todo o
céu, como uma chuva de diamantes, até que a última fagulha de luz tivesse ido
ocupar o seu lugar no grande telhado da noite.
Iemanjá, ao ver-se outra vez com o ventre lisinho,
suspirou:
- Muito
obrigada, maior dos deuses. Já não sou mais solitária, nem apenas um ventre.
Iemanjá passou a ocupar suas noites em observar, a
distância, cada uma das estrelas. Depois, deu um nome a cada uma delas e também
às constelações, que eram as famílias delas.
Infelizmente, nenhuma foi capaz de lhe responder, nem
para dizer se gostara ou desgostara do nome, de tal sorte que Iemanjá continuou
a viver na mais iluminada das solidões.
Olorum percebeu o retomo da tristeza da deusa.
- Difícil
contentá-la - disse a si mesmo, e bem baixinho, porque dizer isto para uma
mulher (seja deusa ou não) qualquer homem (seja deus ou não) sabe bem o preço.
Dali a algum tempo, não sabemos por que artes, Iemanjá
começou a esferizar-se novamente.
- Ai, não!
Outra vez! - disse ela, afagando o ventre ligeiramente abaulado.
Outra vez, sim, Iemanjá teve de passar pelo suplício de
uma gravidez prodigiosa. O tempo passou e ela apresentou-se novamente diante de
Olorum.
- Veja isto,
grande deus! - disse ela, desconsolada. - O que virá agora?
- O que virá se
verá - disse o deus, laconicamente.
Mais um pouco e a deusa já podia colar o ouvido na
barriga, outra vez. Um ruído líquido intenso seguido de estrondos prodigiosos
encheram-na de espanto.
- Que coisas
moventes são estas que trago aqui dentro? - disse, assustada, a si mesma.
Mas o que era, de fato, ela só descobriu quando, caída de
costas outra vez, viu brotar do seu ventre um verdadeiro exército de nuvens de
todas as formas e tamanhos - desde os discretos cúmulos e cirros até as
gigantescas nuvens tempestuosas da cor do ferro, que logo começaram a engolir
as demais.
- O que está
acontecendo, grande deus? - disse Iemanjá, assustada com a escuridão.
- A estas
criaturas macias e alvas chamaremos "nuvens" e à junção maravilhosa
de todas elas chamaremos "tempestade"
disse o deus, serenamente, mas procurando já um bom
abrigo.
Logo o céu encheu-se de clarões e estouros - que o deus,
em seu furor batizante, chamou de "relâmpagos" e "trovões' - e
um poderoso aguaceiro desceu dos céus, enchendo a terra de todas as formas de
acumulações de água, desde os cacos de água das poças até os gigantescos
espelhos dos oceanos.
Iemanjá, entre maravilhada e aterrada, assistiu ao
espetáculo das águas, que desciam velozes dos céus para a terra e depois subiam
velozes da terra para os céus.
Infelizmente, nenhuma destas coisas ruidosas jamais trocou
consigo uma única palavra, de tal sorte que lemanjá continuou prisioneira da
mais úmida das solidões.
- Nem nuvens
nem estrelas a agradam - disse Olorum, baixinho, ao ver a deusa triste outra
vez.
Então, pelo mesmo expediente a nós ocultado, lemanjá
voltou a ter seu ventre fecundado.
- O que mais
agora, meu pai?! - disse ela, pondo uma nova mão trêmula sobre a barriga.
O ventre cresceu outra vez, lemanjá sumiu atrás dele
outra vez, e depois de ter colado o ouvido nele e ter escutado uma confusão de
ruídos, procurou outra vez o deus supremo até ver-se novamente caída de costas.
- Grande deus,
o que vejo aqui? - disse lemanjá, numa felicidade espantada ao ver brotar de
dentro de si uma série de seres tais como ela.
Eram sete deuses, que Olorum, com um riso imenso no
rosto, foi nomeando um a um:
- Eis Xangô,
deus do trovão e da justiça! Eis Iansã, deusa dos ventos e da tempestade! Eis
Ogum, deus dos metais e da guerra! Eis Ossaim, deus das ervas e da cura! Eis
Omulu, deus da varíola e das doenças! E, eis, finalmente, os dois Ibejis,
deuses da infância.
lemanjá, encantada, repetiu o nome de todos eles, um por
um, outra vez:
- Xangô, Iansã,
Ogum, Ossaim, Omulu e os dois Ibejis!